A fita original dessa entrevista está preservada no National Archives and Records Administration, em College Park, nos Estados Unidos. Em abril de 2016, Miúcha a divulgou em seu canal no Youtube. Darei mais informações oportunamente.
O Grande Irmão
Documentos norte-americanos sobre a ditadura militar brasileira
27 de dez. de 2018
27 de nov. de 2018
Tudo o que você queria saber sobre o AI-5
Locutor Alberto Curi (direita) lê o AI-5 ao lado do ministro Gama e Silva |
Carlos Fico
AI-5: o que foi? Por que foi editado? Como foi revogado? Conheça as respostas.
O QUE FOI
AI-5 é abreviatura de Ato Institucional número 5.
Os atos institucionais foram uma inovação da ditadura militar: não havia esse tipo de legislação na história dos diplomas legais do período republicano. O primeiro, editado em 9 de abril de 1964, não tinha número. Quando o segundo foi editado, eles passaram a ser numerados. Conheça todos os atos clicando aqui.
O AI-5 deu poderes aos presidentes da República (na época, o marechal Costa e Silva, que o assinou) para fechar qualquer casa legislativa, inclusive o Congresso Nacional - que foi imediatamente fechado por meio de um "ato complementar". Os atos complementares publicavam as decisões baseadas no ato institucional. Leia o ato complementar número 38 que fechou o Congresso Nacional no dia 13 de dezembro de 1968.
O AI-5 também deu ao presidente da República o poder de nomear interventores nos estados e municípios sem as limitações previstas na Constituição.
O ato reabriu a temporada de suspensões de direitos políticos por dez anos de qualquer cidadão e de cassações sumárias de mandatos de parlamentares em qualquer nível (federal, estadual ou municipal) - duas das mais importantes formas de repressão política.
Os funcionários públicos de qualquer nível podiam ser removidos, aposentados ou postos em disponibilidade pelo presidente. Os juízes perdiam as garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade.
A decretação do Estado de Sítio não mais dependia de aprovação do Congesso. O presidente também passou a poder decretar o confisco dos bens de qualquer funcionário acusado de corrupção em julgamentos sumários.
Talvez a mais grave imposição do AI-5 tenha sido a suspensão da garantia de habeas corpus no caso de pessoas acusadas de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Quer dizer, era fácil impedir que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedesse habeas corpus porque a definição desses crimes era dúbia. Se alguém fosse preso sob essas alegações, não poderia se valer do habeas corpus, mesmo que estivesse sendo interrogado sob tortura.
Além de tudo isso, nada do que fosse praticado com base no AI-5 poderia ser apreciado pela Justiça.
A CONJUNTURA
Em 1968, houve manifestações estudantis contra a ditadura militar. Passeatas marcaram os três meses posteriores ao assassinato do secundarista Edson Luís, em 28 de março, durante protesto dos estudantes contra as instalações precárias do bandejão Calabouço, no centro do Rio de Janeiro.
Os protestos (que ocorreram também em outras cidades) foram violentamente reprimidos pelas polícias militar e civil dos estados.
Os jornais Correio da Manhã e Jornal do Brasil, que haviam investido, pouco tempo antes, no fotojornalismo, publicaram muitas imagens das manifestações e da repressão, chocando a todos. Alguns de seus fotógrafos tinham proximidade com as lideranças estudantis e eram alertados previamente sobre as passeatas e protestos. Essas imagens das manifestações estudantis de 1968 são as mais conhecidas do período e muitos as confundem com a chamada "luta armada".
Não havia censura da imprensa, nem vigorava nenhum ato institucional. Por isso, as manifestações foram possíveis e as fotos puderam ser publicadas.
Os militares e civis mais radicais exigiram do presidente Costa e Silva um novo ato institucional, como o AI-1 ou o AI-2, que permitisse reabrir a temporada de punições "excepcionais" ou "revolucionárias", como eles diziam, isto é, cassações, suspensão de direitos políticos etc. - tal como havia ocorrido na época dos dois primeiros atos.
Costa e Silva (que havia assinado o AI-1) não queria novo ato. Conseguiu conter os radicais, em junho de 1968, durante reunião do Conselho de Segurança Nacional (CSN). Mas, a partir de então, os civis e militares mais radicais passaram a promover provocações (invasões de universidades, espancamento de artistas identificados com a esquerda etc.) a fim de criar clima de conflagração que obrigasse Costa e Silva a decretar novo ato. Veja, aqui, a cronologia de eventos de 1968.
Os radicais conseguiram um pretexto que ficaria famoso.
Os radicais conseguiram um pretexto que ficaria famoso.
O PRETEXTO PARA A DECRETAÇÃO DO AI-5
As provocações deram certo. A Universidade de Brasília (UnB) foi invadida no dia 29 de agosto de 1968. Um aluno foi baleado na cabeça. Muitas prisões foram feitas e as cenas de violência, mais uma vez, chocaram a todos.
Na UnB, estudavam filhos de parlamentares, inclusive da ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido de sustentação da ditadura militar. Até mesmo os parlamentares da ARENA condenaram a invasão.
DISCURSOS DE MARCIO MOREIRA ALVES
O deputado de oposição pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro) do Rio de Janeiro, Marcio Moreira Alves, discursou na Câmara dos Deputados quatro dias depois da invasão da UnB, 2 de setembro de 1968, condenando-a. Ele se perguntou quando o Exército deixaria de ser um "valhacouto [abrigo] de torturadores". Ao contrário do que muitos afirmam, o discurso teve repercussão.
No dia seguinte, 3 de setembro de 1968, Márcio voltou à carga: fez novo discurso sugerindo que as moças, que dançariam com os cadetes nos bailes das escolas militares dali a poucos dias, no 7 de Setembro, os boicotassem. Foram dois discursos, e não um - como costumeiramente se diz.
No dia seguinte, 3 de setembro de 1968, Márcio voltou à carga: fez novo discurso sugerindo que as moças, que dançariam com os cadetes nos bailes das escolas militares dali a poucos dias, no 7 de Setembro, os boicotassem. Foram dois discursos, e não um - como costumeiramente se diz.
Os discursos de Marcio Moreira Alves foram usados pelos militares e civis mais radicais para pressionar Costa e Silva a decretar o novo ato institucional que ele havia se negado a assinar em junho de 1968: os militares se diziam ofendidos pelas palavras do deputado.
Os ministros militares queriam punir Marcio, mas não podiam cassá-lo sumariamente por não estar em vigor nenhum ato. O governo precisou pedir licença à Câmara dos Deputados para processar Marcio Moreira Alves. Foi um processo relativamente longo.
Logo após o segundo discurso, no dia 5 de setembro, o ministro do Exército, Lyra Tavares, pediu (por meio de Exposição de Motivos confidencial) que o presidente Costa e Silva tomasse providências. No dia 10, o chefe do Gabinete Civil enviou solicitação assemelhada ao ministro da Justiça. No dia 19, o ministro da Aeronáutica reforçou o pedido e, no dia 28 de setembro, o ministro da Marinha disse claramente o que queria: a suspensão dos direitos políticos do deputado Marcio.
O regime detestava Marcio Moreira Alves, jornalista do Correio da Manhã que se celebrizara por denunciar a prática de tortura logo após o golpe de Estado de 1964.
PEDIDO PARA PROCESSAR MARCIO MOREIRA ALVES
No dia 2 de outubro, o ministro da Justiça, Gama e Silva, que era mais radical do que muitos militares, pediu ao Procurador Geral da República, Décio Meirelles de Miranda, que encaminhasse uma representação ao Supremo Tribunal Federal pedindo a suspensão dos direitos políticos do deputado.
Na época, a Procuradoria Geral da República não tinha a autonomia que só conquistaria após a ditadura militar, com a Constituição de 1988. O procurador, obediente, fez o que o ministro pediu no dia 11 de outubro de 1968.
O presidente do STF encaminhou a representação a um ministro relator. Coube a Aliomar Baleeiro fazer isso. Baleeiro era conservador, tinha sido deputado federal pelo famoso partido de direita UDN (União Democrática Nacional). Foi nomeado ministro do STF pelo marechal Castello Branco, primeiro presidente do regime militar.
Baleeiro poderia ter impedido que o processo contra Marcio prosseguisse. Mesmo na ditadura, a Constituição protegia os parlamentares com imunidade quando de discursos no exercício do mandato. Marcio falara da tribuna da Câmara. Aliomar Baleeiro optou, entretanto, por enviar o processo à Câmara, a fim de que os deputados concedessem, ou não, a licença solicitada pelos ministros militares para processá-lo. O despacho de Baleeiro, no dia 31 de outubro de 1968, foi bastante tortuoso.
O presidente do STF, baseado no despacho, enviou o processo à Câmara no dia 6 de novembro.
O presidente do STF, baseado no despacho, enviou o processo à Câmara no dia 6 de novembro.
Dois dias depois, os ministros militares forçaram a barra: ameaçaram renunciar se a Câmara não aprovasse a licença para processar Marcio Moreira Alves. A renúncia dos ministros militares, naquela época, causaria grande turbulência política e poderia levar à deposição do marechal presidente Costa e Silva.
No dia 25 de novembro, percebendo que seria derrotado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, o governo substituiu nove de seus membros a fim de obter a aprovação da constitucionalidade do pedido. Foi grande escândalo porque tal substituição em massa nunca havia ocorrido.
Quando a comissão afinal se reuniu, seu presidente, o deputado arenista Djalma Marinho, discordando do governo que apoiava, pronunciou discurso célebre, especialmente pela passagem em que cita Calderón de la Barca: "Ao rei tudo. Menos a honra".
O clima de emocionalismo havia tomado conta da cena política.
O recesso regular do Congresso iria começar, mas uma convocação extraordinária o manteve em funcionamento.
No dia 10 de dezembro, a Comissão de Constituição e Justiça, modificada à força pelo governo, aprovou a constitucionalidade do pedido. Derrotado, Djalma Marinho renunciou ao cargo de presidente da comissão, fortalecendo a posição dos deputados contrários à concessão da licença.
No dia 12, Marcio Moreira Alves discursou, defendendo-se: ouça. A Câmara dos Deputados, afrontando o marechal Costa e Silva e os militares em geral, não aprovou o pedido. 216 deputados o rejeitaram, contra 141 que o aprovaram e 12 abstenções. A votação durou horas. A deputada oposicionista Ivete Vargas, posicionada ao lado da cabine de votação, contabilizava cada voto contrário dizendo: "Este também é nosso!" Quando o resultado foi proclamado, as galerias e os deputados exultaram, cantando o Hino Nacional, julgando que o Congresso havia afirmado sua autonomia e força.
Mas, após a votação, todos sabiam que a ditadura reagiria. Alguns parlamentares sacaram dinheiro de suas contas da agência do Banco do Brasil no prédio do Congresso. Marcio Moreira Alves, com a ajuda de amigos, fugiu.
No dia seguinte, às 11h, o ministro da Justiça, Gama e Silva, apresentou ao presidente uma proposta de ato adicional à
Constituição tão radical que levou o ministro do Exército, Lyra Tavares, a dizer: “assim
você desarruma a casa toda!” Mas Gama e Silva estava preparado: sacou rascunho de outro
ato, que também não agradou Costa e Silva.
REUNIÃO DO CONSELHO DE SEGURANÇA NACIONAL
Costa e Silva queria submeter a proposta de ato ao Conselho de Segurança Nacional para compartilhar, com todos os ministros, que o integravam, a responsabilidade pela decisão.
Os ministros da Fazenda, Delfim Netto, e do Planejamento, Hélio Beltrão, foram chamados à parte, antes da reunião do CSN,
para opinar sobre possíveis efeitos negativos para a economia. Disseram que não
haveria problemas.
O conselho reuniu-se na tarde do dia 13 e aprovou o Ato Institucional número 5, que havia sido redigido por Gama e Silva, Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil, e Tarso Dutra, ministro da Educação.
A reunião foi gravada. Ouça a gravação aqui ou leia a transcrição da gravação. A ata oficial da reunião pode ser lida aqui.
Uma das falas mais conhecidas dessa reunião é a frase do ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho. Ele evitou eufemismos e, aprovando o AI-5, disse a Costa e Silva: "Sei que a Vossa Excelência repugna (...) enveredar para o caminho da ditadura pura e simples, mas parece que, claramente, é esta que está diante de nós (...) Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência".
Outro ministro presente, Delfim Netto, da Fazenda, disse a Costa e Silva: "(...) se vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela [a proposição do AI-5] não é suficiente". Anos depois, Delfim tentou justificar a aprovação que deu ao AI-5. O superministro, "Czar da Economia", diria que, com o AI-5, "fizemos uma reforma tributária que durou 25 anos. Em 1973, o Brasil era citado pelo Banco Mundial como exemplo nessa área".
Apoiadores do golpe de 1964, ex-auxiliares de Castello Branco, que eram críticos de Costa e Silva, disseram a autoridades norte-americanas que o AI-5 era um erro. O general Golbery do Couto e Silva, ex-chefe do SNI, disse ao embaixador norte-americano que o AI-5 "era totalmente desnecessário para combater possíveis ameaças subversivas ou para realizar as reformas que o país precisa". Disse também que o AI-5 "destruiu inutilmente instituições existentes e prejudicou a reputação internacional do Brasil". O documento tem cinco páginas (1, 2, 3, 4, 5). A passagem está no tópico 2, da página 2.
Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento de Castello Branco, garantiu ao diretor de Assuntos Brasileiros do Departamento de Estado, Jack Kubisch, que "os militares tinham tido esse gosto do poder e parecia que eles gostavam, até sedentos por mais". Isso está na segunda página do documento que tem três no total (1, 2, 3).
O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Mario Gibson Barboza, tentou negar que o AI-5 implicava uma ditadura. Em conversa com funcionários do Departamento de Estado, em 21 de agosto de 1969, ele garantiu que o Brasil não havia se tornado uma ditadura. Conforme o secretário de Estado Assistente Adjunto, John Crimmins, Gibson Barboza "não se considerava, em absoluto, o embaixador de uma ditadura militar". O documento tem cinco páginas e essa passagem está na segunda (1, 2, 3, 4, 5).
Um dos líderes da linha-dura, o coronel Ferdinando de Carvalho, também foi ouvido pelos norte-americanos. Ferdinando falava por si só, já que era apenas um militar exaltado sem maiores ligações com o poder. Conheça suas considerações neste documento de oito páginas (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8).
Conheça a reação crítica dos EUA ao AI-5 em outro post deste blog.
POR QUE FOI DECRETADO?
Não foram os discursos de Marcio Moreira Alves que levaram ao AI-5. O ato também não foi decretado para coibir as manifestações estudantis.
Muitos militares e civis apoiadores da ditadura dizem que o AI-5 veio porque a esquerda radicalizou, optando pela "luta armada". Entretanto, as ações armadas da esquerda se avolumariam apenas em 1969, depois do ato.
Na verdade, militares e civis radicalizados estavam insatisfeitos com o que entendiam ser a suposta fraqueza do regime desde 1964. Eles achavam que a punição de comunistas, subversivos ou corruptos não fora completada, a "depuração" não havia sido completa. O primeiro ato institucional e o AI-2 haviam definido prazos para a aplicação das punições excepcionais.
Os radicais queriam mais: o AI-5 expressou a vitória desse grupo. Eles entendiam que o Brasil só se tornaria uma potência mundial se eliminasse os supostos comunistas, subversivos e corruptos.
QUAIS FORAM AS CONSEQUÊNCIAS?
O AI-5 gerou consequências imediatas. O Congresso foi fechado.
Na noite de sua decretação, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi preso.
No dia seguinte, o ex-governador Carlos Lacerda também foi preso.
No dia 30 de dezembro de 1968, onze deputados federais foram cassados. No dia 19 de janeiro de 1969, saiu nova lista de cassações com dois senadores, 35 deputados federais, três ministros do STF e um do STM.
Ao todo, 333 políticos teriam seus direitos políticos suspensos em 1969.
O AI-5 permitiu a montagem de sistemas nacionais de repressão política. Os dois principais sistemas foram o SISSEGIN (Sistema de Segurança Interna no País) e o SISNI (Sistema Nacional de Informações). Havia muita violência antes do AI-5, mas esses sistemas nacionais institucionalizaram uma efetiva repressão política. Há significativas diferenças entre a tradicional violência da polícia brasileira e a montagem de sistemas de repressão política institucionalizados.
O SISSEGIN dividiu o país em seis ZDIs (Zona de Defesa Interna). Em todas elas, instalou-se um Destacamento de Operações de Informações (DOI), formalmente subordinado a um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI): eram os DOI-CODI.
Esses destacamentos faziam a prisão e o interrogatório dos inimigos do regime. Os prisioneiros eram muito frequentemente interrogados sob tortura - já que não era possível contar com garantias da Justiça, como o habeas corpus e a necessidade de se comunicar prisões ao sistema judiciário. Várias pessoas morreram em decorrência da tortura.
Além dos DOI-CODI, as secretarias estaduais de segurança pública também se engajaram na repressão, até porque os secretários de Segurança Pública passaram a ser nomeados pelo governo federal, não pelos governadores. As delegacias estaduais de ordem política e social (DOPS) também prendiam, interrogavam e torturavam.
Conheça o documento que regulou o SISSEGIN aqui.
O SISNI implantou órgãos de informações em todas as repartições públicas brasileiras. Eram as DSIs (Divisão de Segurança e Informações). Os brasileiros passaram a ser vigiados nos ministérios, nas universidades, nas empresas estatais etc. Os agentes de informações se intitulavam "comunidade de informações". Trocavam papeis entre si, os "informes", as "informações" e as "análises" da comunidade de informações. Passaram a ter muito poder porque inspiravam medo: quando alguém era fichado pela comunidade de informações, fatalmente teria problemas.
Um terceiro sistema de repressão foi a censura política da imprensa, que também se organizou institucionalmente, de maneira clandestina, graças ao AI-5: um órgão secreto foi criado no Ministério da Justica, o Setor de Imprensa do Gabinete (SIGAB), subordinado ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal. Esse órgão centralizava todos os pedidos de censura, enviados por diversas autoridades, e produzia uma lista de "proibições determinadas", isto é, assuntos que não poderiam ser publicados pela imprensa. Essa lista era informada às redações por telefonemas ou enviada por escrito. Em alguns órgãos da imprensa, a ditadura instalou um militar que fazia, presencialmente, a censura prévia da publicação.
Portanto, a ditadura passou a contar com uma polícia política (SISSEGIN), com ampla rede de espionagem (SISNI) e com censura política. Os integrantes desses sistemas sentiam-se todo-poderosos. Além disso, o regime criou mecanismos que amenizaram o impacto da repressão, especialmente a propaganda política, que vendia a imagem de um país "que ia pra fente". Também foi significativa a implantação de disciplinas escolares de "moral e cívica", que tentavam doutrinar crianças e adolescentes com visões nacionalistas e patrióticas em defesa do regime.
A propaganda e a censura política impediam que os brasileiros tivessem conhecimento amplo das arbitrariedades do regime. Por isso, até hoje, muitos consideram que a ditadura brasileira não foi muito repressiva.
COMO O AI-5 FOI REVOGADO?
O próprio marechal presidente Costa e Silva, que assinou o ato, quis revogar o AI-5. Ele tentou fazer o que os militares chamavam de "institucionalização", inspirando-se no marechal presidente Castello Branco, que havia tentado tal coisa.
A institucionalização consistia em incorporar na Constituição algumas das medidas de força que constavam dos atos instititucionais. Isso é importante para entendermos o pensamento dos militares: os atos eram chamados de "institucionais", mas eram vistos pelos próprios militares como "excepcionais" (o que de fato eram). Para efetivamente institucionalizar o regime seria preciso torná-los "constitucionais". Ou seja, aspectos dos atos institucionais deveriam ser constitucionalizados para institucionalizar a "democracia forte" almejada pela ditadura. "Democracia forte" é algo que sempre foi desejado pelo pensamento autoritário brasileiro desde a Primeira República.
Castello Branco havia tentado fazer isso com a Constituição de 1967, que ele impôs ao país. Essa Constituição foi aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional. Castello Branco queria que Costa e Silva governasse sem atos institucionais, mas com uma constituição forte. A Constituição de 1967 tornava o Estado de Sítio mais rigoroso. Castello também aprovou Lei de Segurança Nacional que estabelecia a noção de "inimigo interno" (comunistas, subversivos etc.) e impôs Lei de Imprensa draconiana.
Mas isso não deu certo: as manifestações de 1968 pareciam desafiar o arranjo institucional de 1967 de Castello Branco. Daí a "necessidade" do AI-5, segundo os radicais.
Logo depois que assinou o AI-5, o marechal Costa e Silva decidiu fazer o mesmo que Castello Branco: uma nova constituição. Pediu ao vice-presidente, o político civil conservador Pedro Aleixo, que presidisse comissão de "notáveis" para fazer isso. O grupo foi presidido por ele e integrado por Rondon Pacheco, Helio Beltrão, Temístocles Cavalcanti, Carlos Medeiros e Miguel Reale. Costa e Silva participou ativamente dos trabalhos de redação da nova constituição.
Essa constituição nunca seria promulgada. Em seu artigo 182, ela dizia que "o presidente da República, quando considerar de interesse nacional, fará cessar, mediante decreto, a vigência de qualquer ou de todos os dispositivos constantes do Ato Institucional n. 5". Costa e Silva marcou data para reabrir o Congresso e promulgar a nova carta: 1 de setembro de 1969. Os ministros militares eram contrários. Sob pressão, no dia 27 de agosto, Costa e Silva teve uma trombose que o afastaria definitivamente do poder.
Os ministros militares deram um golpe de Estado, impedindo que o vice-presidente, Pedro Aleixo, assumisse a Presidência. Eles se intitularam "Junta Governativa Provisória" e passaram a governar, ainda com o marechal presidente vivo e mantendo Pedro Aleixo subjugado.
A constituição de Costa e Silva foi adaptada e outorgada pela unta sob o título de "Emenda Constitucional n. 1", mas não era uma emenda, era toda uma constituição. O artigo que previa a revogação do AI-5 passou a ser lido assim: "Continuam em vigor o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, e os demais atos posteriormente baixados".
Muitos anos mais tarde, o general presidente Ernesto Geisel conseguiu, afinal "institucionalizar" o regime. Ele outorgou emenda constitucional que extinguiu o AI-5 e, no seu lugar, introduziu, na Constituição, a possibilidade de decretar o Estado de Emergência, espécie de Estado de Sítio muito rigoroso que não dependia da aprovação do Congresso Nacional. Esse foi um dos passos da "abertura política" que Geisel e seu sucessor, o general presidente João Figueiredo, levaram a cabo.
Somente com a Constituição de 1988 o Brasil se livraria do Estado de Emergência imposto por Geisel em substituição ao AI-5.
O conselho reuniu-se na tarde do dia 13 e aprovou o Ato Institucional número 5, que havia sido redigido por Gama e Silva, Rondon Pacheco, chefe da Casa Civil, e Tarso Dutra, ministro da Educação.
A reunião foi gravada. Ouça a gravação aqui ou leia a transcrição da gravação. A ata oficial da reunião pode ser lida aqui.
Uma das falas mais conhecidas dessa reunião é a frase do ministro do Trabalho, coronel Jarbas Passarinho. Ele evitou eufemismos e, aprovando o AI-5, disse a Costa e Silva: "Sei que a Vossa Excelência repugna (...) enveredar para o caminho da ditadura pura e simples, mas parece que, claramente, é esta que está diante de nós (...) Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência".
Outro ministro presente, Delfim Netto, da Fazenda, disse a Costa e Silva: "(...) se vossa Excelência me permitisse, direi mesmo que creio que ela [a proposição do AI-5] não é suficiente". Anos depois, Delfim tentou justificar a aprovação que deu ao AI-5. O superministro, "Czar da Economia", diria que, com o AI-5, "fizemos uma reforma tributária que durou 25 anos. Em 1973, o Brasil era citado pelo Banco Mundial como exemplo nessa área".
Apoiadores do golpe de 1964, ex-auxiliares de Castello Branco, que eram críticos de Costa e Silva, disseram a autoridades norte-americanas que o AI-5 era um erro. O general Golbery do Couto e Silva, ex-chefe do SNI, disse ao embaixador norte-americano que o AI-5 "era totalmente desnecessário para combater possíveis ameaças subversivas ou para realizar as reformas que o país precisa". Disse também que o AI-5 "destruiu inutilmente instituições existentes e prejudicou a reputação internacional do Brasil". O documento tem cinco páginas (1, 2, 3, 4, 5). A passagem está no tópico 2, da página 2.
Roberto Campos, ex-ministro do Planejamento de Castello Branco, garantiu ao diretor de Assuntos Brasileiros do Departamento de Estado, Jack Kubisch, que "os militares tinham tido esse gosto do poder e parecia que eles gostavam, até sedentos por mais". Isso está na segunda página do documento que tem três no total (1, 2, 3).
O embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Mario Gibson Barboza, tentou negar que o AI-5 implicava uma ditadura. Em conversa com funcionários do Departamento de Estado, em 21 de agosto de 1969, ele garantiu que o Brasil não havia se tornado uma ditadura. Conforme o secretário de Estado Assistente Adjunto, John Crimmins, Gibson Barboza "não se considerava, em absoluto, o embaixador de uma ditadura militar". O documento tem cinco páginas e essa passagem está na segunda (1, 2, 3, 4, 5).
Um dos líderes da linha-dura, o coronel Ferdinando de Carvalho, também foi ouvido pelos norte-americanos. Ferdinando falava por si só, já que era apenas um militar exaltado sem maiores ligações com o poder. Conheça suas considerações neste documento de oito páginas (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8).
Conheça a reação crítica dos EUA ao AI-5 em outro post deste blog.
POR QUE FOI DECRETADO?
Não foram os discursos de Marcio Moreira Alves que levaram ao AI-5. O ato também não foi decretado para coibir as manifestações estudantis.
Muitos militares e civis apoiadores da ditadura dizem que o AI-5 veio porque a esquerda radicalizou, optando pela "luta armada". Entretanto, as ações armadas da esquerda se avolumariam apenas em 1969, depois do ato.
Na verdade, militares e civis radicalizados estavam insatisfeitos com o que entendiam ser a suposta fraqueza do regime desde 1964. Eles achavam que a punição de comunistas, subversivos ou corruptos não fora completada, a "depuração" não havia sido completa. O primeiro ato institucional e o AI-2 haviam definido prazos para a aplicação das punições excepcionais.
Os radicais queriam mais: o AI-5 expressou a vitória desse grupo. Eles entendiam que o Brasil só se tornaria uma potência mundial se eliminasse os supostos comunistas, subversivos e corruptos.
QUAIS FORAM AS CONSEQUÊNCIAS?
O AI-5 gerou consequências imediatas. O Congresso foi fechado.
Na noite de sua decretação, o ex-presidente Juscelino Kubitschek foi preso.
No dia seguinte, o ex-governador Carlos Lacerda também foi preso.
No dia 30 de dezembro de 1968, onze deputados federais foram cassados. No dia 19 de janeiro de 1969, saiu nova lista de cassações com dois senadores, 35 deputados federais, três ministros do STF e um do STM.
Ao todo, 333 políticos teriam seus direitos políticos suspensos em 1969.
O AI-5 permitiu a montagem de sistemas nacionais de repressão política. Os dois principais sistemas foram o SISSEGIN (Sistema de Segurança Interna no País) e o SISNI (Sistema Nacional de Informações). Havia muita violência antes do AI-5, mas esses sistemas nacionais institucionalizaram uma efetiva repressão política. Há significativas diferenças entre a tradicional violência da polícia brasileira e a montagem de sistemas de repressão política institucionalizados.
O SISSEGIN dividiu o país em seis ZDIs (Zona de Defesa Interna). Em todas elas, instalou-se um Destacamento de Operações de Informações (DOI), formalmente subordinado a um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI): eram os DOI-CODI.
Esses destacamentos faziam a prisão e o interrogatório dos inimigos do regime. Os prisioneiros eram muito frequentemente interrogados sob tortura - já que não era possível contar com garantias da Justiça, como o habeas corpus e a necessidade de se comunicar prisões ao sistema judiciário. Várias pessoas morreram em decorrência da tortura.
Além dos DOI-CODI, as secretarias estaduais de segurança pública também se engajaram na repressão, até porque os secretários de Segurança Pública passaram a ser nomeados pelo governo federal, não pelos governadores. As delegacias estaduais de ordem política e social (DOPS) também prendiam, interrogavam e torturavam.
Conheça o documento que regulou o SISSEGIN aqui.
O SISNI implantou órgãos de informações em todas as repartições públicas brasileiras. Eram as DSIs (Divisão de Segurança e Informações). Os brasileiros passaram a ser vigiados nos ministérios, nas universidades, nas empresas estatais etc. Os agentes de informações se intitulavam "comunidade de informações". Trocavam papeis entre si, os "informes", as "informações" e as "análises" da comunidade de informações. Passaram a ter muito poder porque inspiravam medo: quando alguém era fichado pela comunidade de informações, fatalmente teria problemas.
Um terceiro sistema de repressão foi a censura política da imprensa, que também se organizou institucionalmente, de maneira clandestina, graças ao AI-5: um órgão secreto foi criado no Ministério da Justica, o Setor de Imprensa do Gabinete (SIGAB), subordinado ao diretor-geral do Departamento de Polícia Federal. Esse órgão centralizava todos os pedidos de censura, enviados por diversas autoridades, e produzia uma lista de "proibições determinadas", isto é, assuntos que não poderiam ser publicados pela imprensa. Essa lista era informada às redações por telefonemas ou enviada por escrito. Em alguns órgãos da imprensa, a ditadura instalou um militar que fazia, presencialmente, a censura prévia da publicação.
Portanto, a ditadura passou a contar com uma polícia política (SISSEGIN), com ampla rede de espionagem (SISNI) e com censura política. Os integrantes desses sistemas sentiam-se todo-poderosos. Além disso, o regime criou mecanismos que amenizaram o impacto da repressão, especialmente a propaganda política, que vendia a imagem de um país "que ia pra fente". Também foi significativa a implantação de disciplinas escolares de "moral e cívica", que tentavam doutrinar crianças e adolescentes com visões nacionalistas e patrióticas em defesa do regime.
A propaganda e a censura política impediam que os brasileiros tivessem conhecimento amplo das arbitrariedades do regime. Por isso, até hoje, muitos consideram que a ditadura brasileira não foi muito repressiva.
COMO O AI-5 FOI REVOGADO?
O próprio marechal presidente Costa e Silva, que assinou o ato, quis revogar o AI-5. Ele tentou fazer o que os militares chamavam de "institucionalização", inspirando-se no marechal presidente Castello Branco, que havia tentado tal coisa.
A institucionalização consistia em incorporar na Constituição algumas das medidas de força que constavam dos atos instititucionais. Isso é importante para entendermos o pensamento dos militares: os atos eram chamados de "institucionais", mas eram vistos pelos próprios militares como "excepcionais" (o que de fato eram). Para efetivamente institucionalizar o regime seria preciso torná-los "constitucionais". Ou seja, aspectos dos atos institucionais deveriam ser constitucionalizados para institucionalizar a "democracia forte" almejada pela ditadura. "Democracia forte" é algo que sempre foi desejado pelo pensamento autoritário brasileiro desde a Primeira República.
Castello Branco havia tentado fazer isso com a Constituição de 1967, que ele impôs ao país. Essa Constituição foi aprovada a toque de caixa pelo Congresso Nacional. Castello Branco queria que Costa e Silva governasse sem atos institucionais, mas com uma constituição forte. A Constituição de 1967 tornava o Estado de Sítio mais rigoroso. Castello também aprovou Lei de Segurança Nacional que estabelecia a noção de "inimigo interno" (comunistas, subversivos etc.) e impôs Lei de Imprensa draconiana.
Mas isso não deu certo: as manifestações de 1968 pareciam desafiar o arranjo institucional de 1967 de Castello Branco. Daí a "necessidade" do AI-5, segundo os radicais.
Logo depois que assinou o AI-5, o marechal Costa e Silva decidiu fazer o mesmo que Castello Branco: uma nova constituição. Pediu ao vice-presidente, o político civil conservador Pedro Aleixo, que presidisse comissão de "notáveis" para fazer isso. O grupo foi presidido por ele e integrado por Rondon Pacheco, Helio Beltrão, Temístocles Cavalcanti, Carlos Medeiros e Miguel Reale. Costa e Silva participou ativamente dos trabalhos de redação da nova constituição.
Essa constituição nunca seria promulgada. Em seu artigo 182, ela dizia que "o presidente da República, quando considerar de interesse nacional, fará cessar, mediante decreto, a vigência de qualquer ou de todos os dispositivos constantes do Ato Institucional n. 5". Costa e Silva marcou data para reabrir o Congresso e promulgar a nova carta: 1 de setembro de 1969. Os ministros militares eram contrários. Sob pressão, no dia 27 de agosto, Costa e Silva teve uma trombose que o afastaria definitivamente do poder.
Costa e Silva, doente, confortado pela mulher |
Os ministros militares deram um golpe de Estado, impedindo que o vice-presidente, Pedro Aleixo, assumisse a Presidência. Eles se intitularam "Junta Governativa Provisória" e passaram a governar, ainda com o marechal presidente vivo e mantendo Pedro Aleixo subjugado.
A constituição de Costa e Silva foi adaptada e outorgada pela unta sob o título de "Emenda Constitucional n. 1", mas não era uma emenda, era toda uma constituição. O artigo que previa a revogação do AI-5 passou a ser lido assim: "Continuam em vigor o Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, e os demais atos posteriormente baixados".
Muitos anos mais tarde, o general presidente Ernesto Geisel conseguiu, afinal "institucionalizar" o regime. Ele outorgou emenda constitucional que extinguiu o AI-5 e, no seu lugar, introduziu, na Constituição, a possibilidade de decretar o Estado de Emergência, espécie de Estado de Sítio muito rigoroso que não dependia da aprovação do Congresso Nacional. Esse foi um dos passos da "abertura política" que Geisel e seu sucessor, o general presidente João Figueiredo, levaram a cabo.
Somente com a Constituição de 1988 o Brasil se livraria do Estado de Emergência imposto por Geisel em substituição ao AI-5.
22 de nov. de 2018
Os Estados Unidos e o AI-5
Costa e Silva e Lyndon Johnson |
Carlos Fico
O AI-5 causou muitos problemas para o governo norte-americano. Vendas de armas foram canceladas, novos empréstimos, suspensos. Um equipamento clandestino mantido em Fernando de Noronha teve de ser removido.
VENDA DE AVIÃO E EMPRÉSTIMOS
Quando o AI-5 foi decretado, no dia 13 de dezembro de 1968, uma sexta-feira, os Estados Unidos cogitavam da venda do jato Douglas A-4 para o Brasil. Também estava sendo negociado o pacote de assistência para 1969, orçado em US$ 143 milhões.
As duas coisas estavam prontas para análise pelo presidente Lyndon Johnson, depois de terem sido aprovadas pelas agências pertinentes do governo norte-americano. Mas os "novos e altamente preocupantes eventos no Brasil" impediram sua efetivação.
Tudo foi suspenso. No dia 17 de dezembro de 1968, o Departamento de Estado informou o assistente de Segurança Nacional de que "os episódios do fim de semana tornam esse momento inadequado para novas ações americanas de apoio direto e público ao Brasil: assim, nós estamos adiando essas recomendações por enquanto". O documento iniciava afirmando que "O goveno Costa e Silva no Brasil transformou-se em uma virtual ditadura acabada nesse último fim de semana". Este documento tem duas páginas 1 2
EUA: BRASIL SE TORNOU UMA DITADURA MILITAR SEM DISFARCES
A posição crítica do governo norte-americano em relação ao AI-5 foi definida pelo secretário de Estado, Dean Rusk, em consulta com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, John Tuthill, entre os dias 17 e 20 de dezembro de 1968.
No dia 17, Rusk pediu uma avaliação ao embaixador no Brasil. Nesse documento de seis páginas (1, 2, 3, 4, 5, 6), ele pediu que o embaixador se concentrasse nos problemas mais preocupantes que exigiam decisão nos dias e semanas seguintes (isso está no parágrafo 1). Afirmou que o regime brasileiro havia se tornado uma ditadura militar sem disfarces, que o AI-5 era duro e que as medidas contra os direitos humanos, fortes (parágrafo 2).
Rusk também disse que era importante acompanhar os jornais: "Consideramos a imprensa brasileira uma das instituições democráticas mais importantes do país e acreditamos que ela proporcionará um dos primeiros sinais de abrandamento do regime, se isso acontecer" (parágrafo 3).
Rusk orientou a legação brasileira a mostrar claro descontentamento com o AI-5, mas, ao mesmo tempo, a evitar expressar infelicidade excessiva. Ele não queria que os funcionários norte-americanos dessem "lições" aos brasileiros e acreditava que a "tradição de moderação" acabaria prevalecendo (parágrafo 4).
O secretário de Estado sabia que "provavelmente não há como atingir plenamente esses objetivos incompatíveis, mas devemos nos esforçar para obter o melhor equilíbrio" (mesmo parágrafo, item c).
Não seria possível iniciar ou manter a cooperação em muitas frentes ("Essa é uma questão de fato"), mas, tampouco surpreender o Brasil com uma redução da assistência e cooperação (parágrafo 5). Essa atitude dúbia deveria ser seguida porque haveria muito em jogo. Rusk começa a listar os interesses norte-americanos (como a questão de 52.000 toneladas de trigo), mas a relação completa está censurada no documento (página 5 em branco).
No dia seguinte, Rusk enviou instruções para todas as embaixadas no continente americano e também para a representação norte-americana na ONU. Nesse documento de duas páginas (1, 2), ele diz que não haverá condenações públicas, mas demonstração de insatisfação de modo discreto e privadamente. Apesar de orientar no sentido da moderação, no final do telegrama Rusk acrescenta um "FYI", isto é, "For Your Information" (para sua informação): "De fato, estamos retardando ou interrompendo todas as novas formas de ajuda econômica ou militar até que a situação se esclareça".
No dia 19, ele escreveu novamente ao embaixador no Brasil (documento com quatro páginas 1, 2, 3, 4). Disse que seria desejável que fosse encontrada alguma maneira de o governo brasileiro voltar atrás em relação ao AI-5, "mesmo que parcialmente", embora percebesse "a margindalidade de nossa influência e a provável sensibilidade de figuras-chave no poder" (parágrafo 1), mas prosseguiu:
"No entanto, as apostas são altas. Uma ditadura militar equivocada e repressiva teria graves consequências para o Brasil e colocaria em marcha uma séria erosão nas relações EUA/Brasil, que devemos fazer todos os esforços para evitar. Sabemos que pode ser necessário suportar essa erosão temporariamente para que permaneçamos livres de identificação com o governo Costa e Silva e que nossos interesses de muito longo prazo possam ser melhor atendidos trabalhando com aqueles que se tornaram os grupos descontentes no país" (parágrafo 2).
O embaixador Tuthill respondeu no dia seguinte com um telegrama de duas páginas (1, 2). Disse que "o que aconteceu é o surgimento de tendência que tem estado em segundo plano por algum tempo. Visto nesse contexto, é provavelmente impraticável esperar que o equlíbrio possa ser reparado ou que o rolo compressor militar possa ser revertido" (parágrafo 2). Ele também informou que os militares brasileiros "estão todos muito interessados no que diz nossa imprensa e no que acontece com a nossa ajuda" (parágrafo 5).
EQUIPAMENTO SECRETO EM FERNANDO DE NORONHA
Quando o AI-5 foi decretado, havia um problema com as operações da Força Aérea norte-americana em Fernando de Noronha e Guararapes, em Recife: o governo brasileiro havia determinado que elas terminassem até o dia 20 de janeiro de 1969.
O Departamento de Defesa queria negociar a manutenção do acordo, mas, com o AI-5, não havia mais clima para isso. O embaixador Tuthill, em telegrama de duas páginas (1, 2), no dia 20 de dezembro de 1968, disse que seria "otimista demais esperar que as várias facetas das relações Brasil/EUA estejam suficientemente claras para permitir a negociação para a retenção da autorização de operação da Força Aérea dos Estados Unidos em Recife/Noronha antes da data de 20 de janeiro, estabelecida pelas autoridades brasileiras para a evacuação dessas instalações pela Força Aérea dos Estados Unidos" (parágrafo 2).
Três dias depois, o embaixador lembrou que a suspensão da venda do jato Douglas A-4 para a Força Aérea Brasileira, por causa do AI-5, tornaria ainda mais difícil qualquer acordo sobre Fernando de Noronha (1).
A base em Fernando de Noronha tinha instalações de hidrofonia para monitorar submarinos e também dava apoio a aviões militares norte-americanos de transporte aéreo estratégico em voos longos entre Cabo Kennedy, na Flórida, e a Ilha de Ascensão, no Oceano Atlântico. Havia, ainda, equipamentos de apoio a sistemas de localização de impacto de mísseis.
As negociações sobre as bases do Nordeste eram secretas, mas o governo brasileiro não sabia que em uma delas estava um equipamento capaz de monitorar testes ou explosões nucleares no mundo, o conversor de calor "B/20-4", que servia para medir o nível de gases raros, como o criptônio. Tinha o tamanho de uma geladeira, com dois metros de altura e 200 quilos: era fácil de esconder. Como esse tipo de medição tinha implicações políticas (já que testes eram realizados por países amigos dos EUA e do Brasil), o governo norte-americano manteve o equipamento clandestinamente na base nordestina brasileira. Por isso, no dia 31 de dezembro de 1968, o embaixador Tuthill escreveu telegrama de duas páginas (1, 2) ao Departamento de Estado:
"As atuais autoridades da Força Aérea Brasileira não estão instruídas sobre a verdadeira natureza da atual atividade da unidade B/20-4 instalada secretamente. Nessas circunstâncias, considero que a atividade deveria ser transferida para o consulado ou, se não for possível, retirada do país (...) Considero que uma tentativa, neste momento, de explicar a presença ou o propósito da unidade às autoridades da Força Aérea Brasileira, a fim de obter um adiamento de sua remoção, seria prejudicial para as relações entre a Força Áerea dos Estados Unidos e a Força Aérea Brasileira" (parágrafo 1, item A).
OUTROS DOCUMENTOS
- 16 de dezembro de 1968 - Jornalista questiona Departamento de Estado sobre AI-5 (1).
- 7 de janeiro de 1969 - Embaixador recomenda neutralidade e discute liberação de US$ 50 milhões (1, 2, 3)
- 6 de maio de 1969 - Congresso dos EUA ameaça instalar comissão para estudar caso brasileiro (1, 2, 3).
- 7 de maio de 1969 - Órgão de informações do Departamento de Estado analisa aposentadoria compulsória de professores (1, 2, 3, 4)
- 16 de maio de 1969 - Órgão de informações do Departamento de Estado analisa AI-5 (1, 2, 3, 4, 5).
- 13 de agosto de 1969 - Venda de jatos para o Brasil seria facilitada se houvesse "normalização" política (1, 2, 3, 4).
15 de nov. de 2018
O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil
Carlos Fico
O primeiro
ministro das Relações Exteriores do regime militar foi o embaixador Vasco
Leitão da Cunha (1964-1966). O embaixador do Brasil em Washington foi Juracy
Magalhães (1964-1965).
Entretanto, em 1965, o
ministro da Justiça, Mílton Campos, pediu para sair porque não concordava com a
iminente decretação do AI-2 e, por isso, Castello pediu a Juracy que assumisse
a pasta, retornando ao Brasil.
Logo depois, como o
AI-2 extinguiu os antigos partidos, Castello decidiu pôr no Ministério da
Justiça alguém que achava capaz de organizar o novo partido de sustentação do
regime e, assim, Juracy assumiu o Ministério das Relações Exteriores.
Vasco e
Juracy eram americanófilos. Julgavam que o Brasil devia se alinhar às posições
dos Estados Unidos.
Vasco foi
responsável por tentar desmontar a chamada “política externa independente”, que
prevalecia desde a gestão de Afonso Arinos de Melo Franco no governo Jânio
Quadros. Na época, Vasco se afastou da secretaria-geral do Itamaraty por
discordar de Afonso Arinos. Ele queria “que
nos mantivéssemos com os Estados Unidos” (1). O
embaixador dos Estados Unidos no Brasil disse que mantinha com
Vasco conversas “semi-pessoais e também semi-oficiais” (2). O
secretário de Estado, Dean Rusk, constrangia-se com a subserviência do Brasil e
chegou a dizer a Vasco que não esperava um alinhamento automático (3).
Juracy, quando
foi indicado para a embaixada em Washington, disse frase que ficaria célebre: “o que é bom para os Estados Unidos é bom
para o Brasil” (4). Em
Washington, evitava entregar documentos brasileiros ao governo norte-americano
que pudessem contrariar os Estados Unidos. O próprio Departamento de Estado achava
isso estranho. A propósito de um documento desse tipo, um assessor do
secretário de Estado ironizou Juracy: “O
embaixador brasileiro está segurando a carta” porque “ele não deseja de maneira nenhuma prejudicar os calorosos sentimentos e
o respeito” que Rusk e Johnson tinham pelo Brasil. Rusk teve de dizer que,
evidentemente, não havia nenhuma razão para que a carta não fosse entregue (5).
Para os
Estados Unidos, tanta boa vontade atrapalhava. Corriam piadas sobre o excesso
de subserviência do Brasil aos Estados Unidos que constrangiam o Departamento
de Estado: quando o embaixador norte-americano Lincoln Gordon deixou seu cargo
no Brasil, houve alguma demora até que o presidente Johnson indicasse o novo
embaixador, o que se justificava – dizia-se – porque o presidente americano “já tinha dois, Juracy Magalhães e
Roberto Campos” (ministro do Planejamento
igualmente americanófilo).
A
disposição excessivamente favorável de Juracy incomodava o governo
norte-americano:
Infelizmente, a imagem
projetada por Juracy Magalhães, Pio Corrêa e
Roberto Campos faz
pouco para dissipar a impressão que é semeada pelos antiamericanistas. Juracy
Magalhães (que
proclamou publicamente que o que é bom para o EUA é bom para o Brasil) e Campos
fazem pouco esforço para adequar suas declarações pró-americanas ao humor
político do país. Embora o ônus da acusação de que o governo brasileiro seja
subserviente em sua política externa aos EUA recaia sobre o Brasil e não sobre
os EUA, e assim não possa ser chamada de antiamericana per se, ela conduz o
agressor, quase automaticamente, a uma crítica à política externa
norte-americana (6).
Dean Rusk ainda era secretário de Estado em 1968, quando o
AI-5 foi decretado. Na ocasião, ele escreveu ao embaixador norte-americano no
Brasil dizendo que se arrependia da extrema associação com o regime militar quando
Juracy assumiu o Itamaraty: “como você sabe, a posteriori,
nós acreditamos que erramos, depois do ato de outubro de 1965, em não recuar mais
de nossa associação íntima e identificação pública com o governo de Castelo” (7).
NOTAS
(1) CUNHA, Vasco Leitão da. Diplomacia em alto-mar: depoimento ao
CPDOC. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV; Funag, 2003 p. 270.
(2) [(...) semi-personal and also semi-official, similar to our many talks in Rio
when he was Foreign Minister] Telegrama de Gordon a Tuthill, de 27 de outubro
de 1966. NARA. RG59, 1964/1966. Caixa 1933.
(3) [Nevertheless we consider that the interests of Brazil and the U.S. are
parallel, - and that on basic issues Brazil and the U.S have a mutuality of
interests] Memorando de conversação entre Rusk e Vasco, de 3 de dezembro de
1964. NARA. RG59, 1964/1966. Caixa 1945.
(4) MAGALHÃES, Juracy. Minhas memórias
provisórias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. p. 11.
(5) [The Brazilian Ambassador has been holding the letter, having
recommended to his government that it not be delivered until he could first
ascertain that it was timely and that you and President Johnson would not find
it unwelcome (...) He does no wish in any way to injure the warm feelings and
respect you and President Johnson have for Brazil, and he has asked ARA
informally to obtain your views in the matter (...) you know of no reason why
the letter from President Castelo Branco to President Johnson should not be
delivered] Telegrama de Jack Vaughn, do Bureau
of Inter-American Affairs, para Rusk, de 16 de setembro de 1965. NARA. RG59,
1964/1966. Caixa 1725.
(6) [Unfortunately the image projected by Juracy Magalhães, Pio Correa and
Roberto Campos does little to dispel the impression being sown by the
anti-Americans. Juracy Magalhães (who publicly proclaimed that what is good for
the U.S. is good for Brazil) and Campos make little effort to temper their
pro-American statements to the political mood of the country. While the burden
of the charge that the GOB is subservient in its foreign policy to the U.S. is
directed at the GOB and not at the U.S., and cannot, therefore, be termed
anti-American per se, it does lead the attacker almost automatically to a
criticism of U.S. foreign policy] Current
State and Future Outlook for Anti-Americanism in Brazil. 18 de agosto de
1966. NARA. RG59, 1964-1966. Caixa 1945. p. 17.
(7) [(...) as you know, in retrospect we believe we erred after October ’65
Act in not drawing back further from our close association and public identification
with Castelo Government] Telegrama de Rusk para Tuthill, de 25 de dezembro
de 1968. NARA. RG59, 1967-1969. Caixa 1910.
Assinar:
Postagens (Atom)