3 de nov. de 2018

Tudo sobre a "Operação Brother Sam"

Carlos Fico

A  C O N J U N T U R A


Em 1961, o vice-presidente da República, João Goulart, assumiu a Presidência depois da renúncia do presidente Jânio Quadros.

Jango, como também era chamado, quase não tomou posse: os ministros militares lançaram nota dizendo que ele não poderia assumir porque levaria o Brasil ao comunismo. Isso inaugurou uma crise tremenda.

João Goulart era muito malvisto pela direita porque era o herdeiro político de Getúlio Vargas, de quem foi ministro do Trabalho: em 1954, teve de deixar o cargo porque havia proposto aumento de 100% do salário mínimo e houve forte reação dos militares.

Quando Jânio renunciou em 25 de agosto de 1961, Goulart estava em visita oficial à China. Ele retardou seu retorno ao país para que uma solução fosse encontrada.

Políticos conservadores acharam a saída: instauraram, às pressas, o regime parlamentarista e, assim, Jango pôde voltar e assumir a Presidência. Ele seria apenas o chefe de Estado, mas quem governaria seria um primeiro-ministro.

Essa situação permaneceu até 24 de janeiro de 1963 quando um plebiscito rejeitou o parlamentarismo e Goulart assumiu plenos poderes.

Durante a fase do parlamentarismo, João Goulart enfrentou forte campanha de desestabilização: muita propaganda política contrária e oposição dos EUA, que lhe negaram empréstimos.

Depois do plebiscito de janeiro de 1963, a direita desistiu da simples desestabilização e resolveu conspirar pela derrubada do presidente. Essa conspiração contou com o apoio do governo norte-americano. A "Operação Brother Sam" foi a parte militar e logística desse apoio.

Os conspiradores supunham que Goulart fosse resistir à tentativa de golpe e, por isso, pediram ajuda ao governo dos Estados Unidos por meio do embaixador norte-americano no Brasil, Lincoln Gordon. Nem teria sido preciso: a ajuda vinha sendo planejada havia muito tempo.


A N TE C E D E N T E S

Em 30 de julho de 1962, o embaixador Lincoln Gordon e o subsecretário de Estado adjunto para Assuntos Interamericanos, Richard Goodwin, tiveram reunião com o presidente John Kennedy para tratar do Brasil. Nessa reunião, ambos sugeriram ao presidente a possibilidade de um golpe contra Goulart liderado pelos militares. A reunião foi gravada e pode ser ouvida aqui. A conversa foi traduzida pelo blog Café na Política.

Quase um ano depois, em 5 de junho de 1963, um documento da CIA informava que um dos ex-ministros militares que havia se oposto à posse de Goulart em 1961, o marechal Odylio Denys, participava de um movimento militar para derrubar João Goulart. Embora pessimista quanto à efetivação do golpe, Denys cita o general Mourão Filho como possível líder e iniciador do deslocamento de tropas (o que de fato aconteceria). O documento tem duas páginas: 1 2

O presidente Kennedy determinou que fosse feito um estudo com hipóteses de ação para o caso brasileiro, um "Plano de Contingência". O plano foi concluído em 11 de dezembro de 1963, após o assassinato de Kennedy. Afirmava que Goulart poderia implantar uma ditadura de tipo peronista no Brasil e acabaria dominado pelos comunistas. O golpe militar para derrubar Goulart deveria ser apoiado por governo alternativo formado por governadores de grandes estados brasileiros (como MG ou SP), seguido pelo controle de uma junta militar (como de fato se deu). Se houvesse resistência, os EUA deveriam apoiar com petróleo, comida, armas e munição, "mas intervir com forças somente se houvesse clara evidência de intervenção soviética ou cubana". Como se vê, o Plano de Contingência previa ações políticas, como a formação de governo alternativo, e militares - a futura Operação Brother Sam. O documento tem oito páginas: 1 2 3 4 5 6 7 8 

No dia 27 de março de 1964, o adido militar norte-americano no Brasil, Vernon Walters - que era amigo de muitos militares brasileiros -, informou que os conspiradores faziam vários pedidos de ajuda. Isso está na segunda página deste documento 1 2

No dia 28 de março de 1964, o embaixador Lincoln Gordon enviou telegrama ao Departamento de Estado pedindo que fosse providenciada, imediatamente, uma "entrega clandestina de armas". A entrega deveria ser feita por um "submarino não identificado, a ser descarregado à noite, num ponto isolado da costa de São Paulo, ao sul de Santos, provavelmente próximo a Iguape ou Cananéia". Ele queria que a força-tarefa naval partisse logo porque poderia haver resistência e seria preciso que os EUA fizessem uma demonstração de força. O documento também revela que o general Ulhoa Cintra, braço direito do general Castello Branco, era seu contato e estava fazendo estimativa da necessidade de armas. Nesse mesmo documento, ele disse:

"Para este propósito, e de acordo com nossas negociações de 21 de março em Washington, uma possibilidade parece ser a partida antecipada de uma força-tarefa naval para manobras no Atlântico sul, mantendo-a no espaço de uns poucos dias de distância de navegação de Santos. Provisões logísticas deveriam satisfazer as exigências especificadas no plano de contingência para uma força-tarefa conjunta combinada da Marinha dos Estados Unidos para o Brasil, do chefe do Estado-Maior para o Brasil Sul, revisado aqui em 9 de março. Aeronaves de transporte seriam muito importantes para efeito psicológico."

A ideia do submarino noturno fazendo entrega clandestina de armas em uma praia deserta foi considerada um "pedido esquisito" e foi rejeitada durante uma reunião, no mesmo dia 28, na Casa Branca. Um dos presentes lembrou que um submarino só conseguiria levar quantidade muito pequena de armas. Outros participantes também recusaram a ideia, embora não afastassem a necessidade de alguma ajuda. O relato dessa reunião está neste documento.

Ainda no mesmo dia, o assessor de Segurança Nacional do presidente Lyndon Johnson (vice de Kennedy que assumiu após o assassinato do presidente, em novembro de 1963) respondeu a Gordon dizendo que não haveria submarino, que a maior preocupação em Washington dizia respeito ao abastecimento do Exército brasileiro e que ele podia contar com Washington "para uma ação efetiva se o pior acontecer". Veja essa resposta aqui.

No dia seguinte, 29 de março de 1964, o embaixador retrucou com seus melhores argumentos para convencer o governo norte-americano de que havia, de fato, o risco concreto de o Brasil se tornar comunista e que era indispensável que os EUA tranquilizassem "o grande número de democratas no Brasil de que não somos indiferentes ao perigo de uma revolução comunista aqui". Com este documento, Gordon convenceu a Casa Branca da necessidade da "Operação Brother Sam".


A  "O P E R A Ç Ã O  B R O T H E R  S A M"

A operação consistiu no envio de uma força-tarefa naval liderada pelo poderoso porta-aviões USS Forrestal (na foto principal deste post, vê-se o Forrestal, em 1968). Também foram enviados um porta helicópteros, um posto de comando aerotransportado, seis contratorpedeiros (dois equipados com mísseis teleguiados) carregados com cerca de 100 toneladas de armas (inclusive um tipo de gás lacrimogêneo para controle de multidões chamado CS Agent) e quatro navios-petroleiros que traziam combustível.

A ideia era que essa força-tarefa, estacionada na costa do Brasil, pudesse fazer uma "ponte aérea" entre o Forrestal e algum lugar em São Paulo a fim de entregar as armas. Os navios-tanque forneceriam combustível porque o sindicato dos petroleiros apoiava Goulart e os conspiradores temiam um boicote. No dia do golpe, 31 de março de 1964, às 14:29, o Departamento de Estado enviou telegrama informando Gordon sobre o despacho da operação. Às 19:53, reenviou o telegrama corrigindo alguns erros do anterior. O documento tem duas páginas 1 2 A primeira página está reproduzida na foto abaixo. O telegrama com correções está aqui.


Nesse mesmo dia 31, Gordon enviou instruções aos cônsules de São Paulo e de Minas Gerais para que dissessem aos governadores Adhemar de Barros e Magalhães Pinto que "desejamos fortalecer de qualquer maneira viável as forças de resistência e oposição à atual linha de conduta de Goulart. Isso poderia incluir apoio político e moral, ação econômica ou apoio logístico". Os dois telegramas enviados são idênticos, com duas páginas cada um, tanto o que foi para São Paulo 1 2 quanto o que foi para Minas Gerais 1 2Nesses telegramas, Gordon fala da necessidade de preservar "the color of legitimacy", a aparência de legitimidade, por meio da decretação do estado de beligerância por grande estados brasileiros - conforme estabelecia o Plano de Contingência de 1963.

No caso de São Paulo, a resposta veio no mesmo dia: Adhemar disse ao cônsul que armas eram a maior necessidade e que os governadores pretendiam declarar o estado de beligerência 1 2

Magalhães Pinto estava confiante numa vitória rápida. A resposta do cônsul em Minas só veio no dia seguinte 1 2

Nesse dia 1 de abril de 1964, houve uma reunião na Casa Branca, às 10h, para avaliar a questão. O secretário de Estado, Dean Rusk, disse que Gordon ainda não estava pedindo ajuda, mas mencionou a preocupação de Adhemar sobre as armas. Rusk estava preocupado com a possível descoberta da Brother Sam porque jornalistas tinham detectado o movimento naval incomum. Essas informações estão nos parágrafos 2 e 3 do documento. Nesse documento, o secretário de Defesa, Robert McNamara, deu detalhes sobre a operação (parágrafo 7), conforme registrou quem fez a ata da reunião:

"Ele fez um relato sobre o status da força-tarefa. Ela zarpou esta manhã e estaria nas proximidades de Santos no dia 11 de abril. As armas e munição estão sendo reunidas para transporte aéreo em New Jersey e a ponte aérea levaria 16 horas a partir do momento da decisão. Quanto a derivados de petróleo, o primeiro navio da Marinha, desviado da área de Aruba, estaria a postos no dia 10 ou 11 de abril. Há, no entanto, um petroleiro norueguês, fretado pela Esso no Atlântico Sul, carregado com gasolina e querosene para aviação necessárias. Ele está indo para Buenos Aires e deve chegar lá no dia 5 ou 6 de abril"

No dia 2 de abril de 1964, Gordon enviou novo telegrama dizendo que, até aquele momento, não via necessidade de apoio militar, mas reiterou que os petroleiros não fossem ainda dispensados. Isso está no parágrafo 2 da terceira página do telegrama 1 2 3

Nesse dia 2, o Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos se reuniu às 12h. O sub-secretário de Estado, George Ball, disse que a declaração de vacância (feita pelo Congresso brasileiro horas antes) era de "legalidade duvidosa". O secretário de Estado, Dean Rusk, disse que não havia o que fazer, a não ser esperar, mas que "a força-tarefa da Marinha dos Estados Unidos indo para o Brasil deve continuar até que recebamos mais informações". Isso está no primeiro parágrafo da página 2 do documento. O secretário McNamara concordou e disse que a força-tarefa estava perto de Antigua, no mar do Caribe, e poderia voltar no dia seguinte se a situação continuasse melhorando (página 3). No final da reunião, o presidente Lyndon Johnson fez uma brincadeira: o constante problema de Cuba não havia sido mencionado na reunião e ele perguntou o que os EUA estariam fazendo para tornar Cuba "apenas um incômodo", diferentemente do caso do Brasil, um grande problema. Todos riram e o secretário Rusk disse que, se as coisas no Brasil continuassem progredindo, isso teria um efeito positivo no caso de Cuba e do Chile (página 4).

Esse mesmo documento contém teleconferência realizada na mesma data entre Gordon e a Casa Branca durante a qual foram transmitidos detalhes sobre os navios e o desembarque da carga, a estimativa de que a força-tarefa estaria próxima ao Nordeste do Brasil no dia 4, a recomendação de cuidado com o caráter secreto da operação e outros detalhes. A transcrição da teleconferência começa logo depois da ata da reunião do Conselho na página numerada com 12.

No dia seguinte, 3 de abril de 1964, às 14h, houve outra reunião do Conselho, dessa vez para que o presidente Lyndon Johnson informasse líderes parlamentares sobre o caso do Brasil (entre outros assuntos). Nada foi dito aos parlamentares sobre a Brother Sam. O secretário Rusk fez um resumo da situação: disse que Goulart tinha se voltado para a criação de um regime político autoritário bastante esquerdista, que o movimento no Brasil não era um "golpe" latino-americano típico e que os militares brasileiros se viam como guardiães do processo democrático. Isso está na página 2 do documento

Como Goulart não resistiu - até porque foi informado do apoio norte-americano aos golpistas - a parte militar da Brother Sam foi desativada antes de chegar à costa brasileira.

Entretanto, os petroleiros ainda estavam à disposição. Rusk ficou preocupado com os custos da retenção dos navios que poderiam chegar a US$ 2.3 milhões. Como a parte militar da operação havia sido desativada, a despesa cairia no Departamento de Estado e não do Departamento de Defesa. Por isso, o secretário de Estado enviou telegrama ao embaixador Gordon, ainda no dia 3, perguntando se o governo brasileiro poderia reembolsar as despesas. Detalhes sobre essa questão dos petroleiros foram retomados em telegrama de 5 de abril de 1964.


A  D E S C O B E R T A  D A  B R O T H E R  S A M

Em 1975, a pesquisadora Phyllis R. Parker, fazendo seu mestrado em Administração Pública na Universidade do Texas, descobriu os documentos secretos da operação na biblioteca do presidente Lyndon Johnson.

Parker pediu a desclassificação dos documentos em 11 de junho de 1975 por meio de formulário próprio. Ela também apresentou os objetivos da pesquisa. Teve de insistir no pedido, mandando nova carta, em 30 de dezembro de 1975. Na mesma época, ela também enviou um pedido de entrevista a Vernon Walters em duas páginas 1 2, que respondeu aceitando.

Ela apresentou seu trabalho final em 1976. No ano seguinte, Parker publicou, no Brasil, um livro sobre o tema.




No final de 1976, o jornalista Marcos Sá Corrêa publicou parte dos documentos no Jornal do Brasil. Ele reuniria a reportagem em um livro publicado em 1977. Mas a descoberta da Brother Sam se deve a Phyllis Parker.





Em 2006, divulguei novos documentos sobre a "Operação Brother Sam" que haviam sido liberados pelo governo norte-americano. Sobre o tema, lancei um livro em 2008.




P O L Ê M I C A S  S O B R E  A  O P E R A Ç Ã O

Mesmo antes de 1975, sempre houve suspeitas de que o governo dos EUA tinha apoiado os golpistas de 1964, mas isso era totalmente negado, tanto pelos norte-americanos, como pelos brasileiros que participaram da conspiração. O ex-ministro das Relações Exteriores de Castello Branco, Vasco Leitão da Cunha, e o ex-embaixador em Washington, Roberto Campos, se empenharam na negativa. Vernon Walters garantiu que só soube da operação quando ela foi revelada por Parker. A afirmação de Walters se comprova como falsa diante dos documentos conhecidos.

O embaixador Lincoln Gordon sempre garantiu que o golpe de 1964 não havia contado com apoio norte-americano. Em 1966, ele garantiu que o golpe foi 100% brasileiro 1 2 Na época, Carlos Lacerda disse que o Brasil tinha sido poupado da humilhação de uma intervenção militar pelos Estados Unidos. Afonso Arinos de Melo Franco - que foi nomeado por Magalhães Pinto para negociar o estado de beligerância - disse, no segundo volume de suas memórias, que esclareceria o episódio no volume seguinte, mas, quando o publicou, preferiu silenciar.

O general Ulhoa Cintra e demais brasileiros que pediram armas e articularam a Brother Sam cometeram crime contra a independência e integridade nacional - o chamado crime de traição à Pátria.

O simples fato de ter havido previsão de desembarque de tropas e munição - além de apoio logístico - torna a "Operação Brother Sam" uma das iniciativas mais ousadas do governo norte-americano da época em relação à América Latina.

O próprio secretário de Estado, em seu telegrama de 30 de março de 1964, disse a Gordon que o apoio às forças anti-Goulart não seria "trabalho para um punhado de fuzileiros navais norte-americanos" porque o Brasil era um país continental. O papel de Gordon no convencimento do Departamento de Estado foi essencial para a deflagração da Brother Sam. Nesse mesmo telegrama, Rusk diz a Gordon que os EUA não podiam se colocar na posição de, no futuro, serem descobertos nessa "embaraçosa tentativa de intervenção". O embaixador Lincoln Gordon, entretanto, pensava de modo diferente, como disse em telegrama enviado a Rusk:

"O risco de que, posteriormente, a operação secreta seja atribuída ao governo dos Estados Unidos nos parece secundário em relação aos efeitos positivos que a operação possa ter se for conduzida com habilidade, levando em conta que muitas coisas que não fazemos são regularmente atribuídas a nós (...) Eu entendo perfeitamente quão grave é a decisão envolvida nesse comprometimento eventual com uma intervenção militar aberta aqui."

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