2 de out. de 2018

Lula e o Departamento de Estado dos EUA

Carlos Fico


Uma conversa com Lula e outra sobre ele registradas pelo Departamento de Estado em 1979. É o que se vê nos documentos divulgados no final deste post.

Os registros das duas conversas (chamados de “memorandos de conversação”) foram enviados ao Departamento de Estado no dia 21 de setembro de 1979 pelo cônsul geral dos Estados Unidos em São Paulo, Terrell E. Arnold (ele assinava apenas Arnold como era comum nesses documentos), já que as conversas aconteceram em São Paulo.

Na primeira página, Arnold diz que “É digno de nota que, embora Lula tenha adquirido uma reputação nacional como um líder trabalhista com apoio e apelo genuínos, ele atualmente parece estar se lançando para todos os lados sobre uma ampla área e variedade de assuntos”. Ainda no encaminhamento dos dois memorandos, Arnold avalia o perfil político de Lula na página 2: “Sua posição tem permanecido relativamente moderada, certamente mais do que as posições endossadas por várias das pessoas que Lula anunciou como formando uma comissão consultiva para a organização do Partido dos Trabalhadores” (ele cita vários nomes de supostos integrantes no aerograma).

O primeiro memorando registra os principais pontos de uma conversa entre Lula, o professor da Stanford University, William Gould e o adido para assuntos do trabalho (Labor AtacchéDale M. Povenmire. A conversa aconteceu na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, no dia 30 de agosto de 1979. As anotações foram feitas pelo adido, mas a conversa parece ter sido conduzida pelo professor, já que o documento se inicia com a frase “Em resposta ao questionamento inicial do professor Gould, Lula fez as seguintes considerações principais”.

Segundo o documento, Lula avaliava negativamente o imposto sindical (p. 1): “Esse imposto deve ser revogado, talvez eliminando-o gradualmente ao longo de um período de quatro ou cinco anos, a fim de permitir que os sindicatos ajustem suas finanças aumentando as cobranças de quotas dos membros individuais. Os trabalhadores devem assumir a responsabilidade de apoiar suas próprias organizações sindicais e obter o tipo de representação que merecem”.

O adido informa que a entrevista foi feita às 20h, que "Lula estava obviamente cansado e com os olhos vermelhos por excesso de trabalho”. Menciona, ainda, que ele se entusiasmou com a discussão, prolongando a entrevista e que estava sempre acompanhado por dois assistentes (p. 3).

O segundo memorando registra a conversa entre Virginia Sher, encarregada política (political officer) e Leôncio Martins Rodrigues, registrado como professor de Ciências Sociais da USP, ocorrida no dia 19 de setembro de 1979.

Segundo o relato de Virginia (p. 1), Rodrigues confirmou ter sido convidado por Lula para atuar como um de seus conselheiros políticos, como havia noticiado o Jornal do Brasil (veja abaixo) no dia anterior, mas ele não aceitara. Conforme o documento, Rodrigues teria dito que “Lula era politicamente ingênuo e não sobreviveria como político. Mais tarde, porém, Rodrigues confirmou que Lula havia discutido com ele seu interesse em estabelecer um PT e admitiu que havia contactado outros indivíduos para servir como assessores políticos e trabalhistas".


A NOTA NA COLUNA "INFORME JB" SOBRE O CONVITE DE LULA


Em outra passagem da p. 1, Virginia registra que Rodrigues teria feito um “aparte sarcástico” quando tratou da viagem que Lula fez na ocasião a Pernambuco para encontrar Miguel Arraes. Leôncio Martins Rodrigues teria dito que “a viagem de Lula para o Nordeste em conjunção com o retorno de Arraes foi provavelmente planejada só para dar a Lula mais cobertura de imprensa, que ele ‘adorou’”.

Virginia Sher conclui com breve comentário – como é habitual nesse tipo de documento – dizendo que Rodrigues considerava-se orgulhosamente um intelectual erudito, não queria se envolver em questões políticas menores e que, apesar de admirar Lula, “ele tende a desprezá-lo por sua falta de educação, citando os frequentes erros de português de Lula. Ele considera a deficiência educacional de Lula uma das razões pelas quais ele não sobreviveria em meio a políticos experientes e astutos”.



INFORMAÇÕES SOBRE OS DOCUMENTOS:
Esses documentos fazem parte do fundo documental (Record Group) intitulado “Central Foreign Policy Files” que abrange o período 1973 a 1979 e estão no National Archives and Records Administration (NARA) na cidade de College Park, MD, nos Estados Unidos. Podem ser consultados por qualquer pessoa. É um dos fundos documentais mais recentemente liberados do Departamento de Estado. Boa parte dos documentos desse fundo está disponível na internet (documentos digitalizados). Para pesquisá-los, clique aqui. Faça buscas de assuntos múltiplos preenchendo o box "Search Diplomatic Records", por exemplo, com Medici AND Kissinger (ou o que você quiser). Faça várias pesquisas combinando termos com AND.  Não se esqueça de clicar em "+Show More". Os registros que aparecerem como "P-Reel Document Index Entries" são os que NÃO foram digitalizados. Clique em "view records" e anote o "Document Number".

Enfim nem todos foram digitalizados, como esses sobre Lula. Para esses, é necessário ir ao NARA e consultar, na sala de pesquisa do 2. andar, o catálogo impresso (finding aid) intitulado “Central Foreign Policy File” DEPOIS de buscar, via computador, o número relativo ao documento (Document Number) que se quer. Esse número sempre tem uma estrutura assemelhada e sempre começa com P (de printout). São versões impressas de algo que foi filmado, portanto não têm boa qualidade.

Ou seja, parte dos documentos do "Central Foreign Policy Files" estão digitalizados. Basta procurar no link acima e clicar no ícone view records. Outros não foram digitalizados e só podem ser vistos pessoalmente no NARA. São os que começam com P.

No caso do documento sobre o Lula, o número é P790143-0070. Isso significa que o documento é o de número 70 e está na caixa 143. Há, no catálogo impresso, mais informações de localização necessárias: o número da entrada, stackrowcomp e shelf (no caso, UD-12D6, 150, 70, 7 e 6, respectivamente).

Ou seja, é possível iniciar a pesquisa antes de ir ao NARA buscando os documentos que se quer por meio do link acima, anotando-se o número que se inicia com P (Document Number) e, depois (já no NARA em College Park), verificando-se no catálogo impresso do NARA as demais informações. Todas as informações numéricas são necessárias para se preencher uma ficha e pedir um documento desse fundo (somente para esses documentos que não foram digitalizados: os digitalizados só estão disponíveis online). É trabalhoso. Você receberá uma caixa que contém muitos documentos. No caso em pauta, a caixa reúne os documentos que vão de 0004 e 2469 (veja foto abaixo). Em alguns casos, a numeração é bastante difícil de visualizar porque está em um carimbo meio apagado (aquele tipo de carimbo automático do século XX) que o processo de microfilmagem prejudicou ainda mais.

É possível contratar pesquisadores que fazem a parte local e final da pesquisa, desde que você dê as coordenadas básicas, confie em pesquisas feitas por outrem e possa pagar (eles não cobram muito caro, mas cobram em dólar). Existe uma lista de pesquisadores experimentados, inclusive com suas especialidades de pesquisa, que é possível contratar e que são de algum modo reconhecidos pelo NARA. Conheço pessoalmente vários desses pesquisadores e todos são ótimos e gentis. Alguns falam/escrevem português e muitos falam/escrevem "portunhol" - importante para estudantes que estão se iniciando. Para ver uma relação que é atualizada em ordem aleatória cada vez que se entra nela, clique aqui.




IMPORTANTE: os documentos aqui reproduzidos, outrora classificados como "Limited Official Use", foram desclassificados pela autoridade norte-americana pertinente conforme NND 78957












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